Dois Papas - A Humanização do Divino


Este comentário pode conter spoilers.


    Pode-se dizer que não sou a pessoa mais religiosa do mundo. Mesmo assim, e tal como na política, é impossível não ter alguma opinião. Por essa razão, o filme "Dois Papas" foi uma surpresa muito agradável. É impossível ficarmos neutros com tudo o que se fala. Expõe vários problemas da Igreja Católica em formato de diálogo e debate entre duas figuras gigantes. 

    Joseph Ratzinger e Jorge Bergoglio são dois indivíduos muito distintos. Talvez não os conheçam com estes nomes, são mais conhecidos como Papa Bento XVI e Papa Francisco, respetivamente. O filme baseado em factos reais começa por apresentar-nos a altura da morte de João Paulo II e a eleição do sucessor, Bento XVI (2005). A partir daí, conta-nos como, anos mais tarde (em 2012, no ano de vários escândalos relacionados com a Igreja), Bergoglio vai a Roma tratar da sua reforma com o Papa. Em vez disso, passa uns dias a tentar convencer o Santo Padre a deixá-lo reformar-se do título de cardeal. Como já devem calcular, não aconteceu. 





    Começa uma série de cenas em que os temas principais são a religião e a sua prática. São momentos muito simples, onde os dois estão apenas sentados ou a caminhar pelo jardim a falar sobre a razão de um querer sair e de o outro não querer que ele apresente a sua reforma. Bento XVI é um Papa conservador, talvez demasiado para um mundo que está sempre em evolução. Comentam essa como sendo a razão pela qual muitos fiéis abandonam a Igreja, sentem que está antiquada e controladora. Bergoglio argumenta a sua tendência reformista com a frase: "Nada é estático na natureza ou no universo". 

    Na verdade, e acho que também foi a razão de ter adorado (sou grande fã do Papa Francisco), é que acaba por mudar a forma como o outro pensava sobre ele (havia uma certa rivalidade). Durante o diálogo, há muitas frases de Bergoglio que cativam o pensamento. Demonstra desilusão para com a forma como a Igreja dá mais importância a burocracias do que a problemas internos que todos conhecemos. Expõe a alienação que criam em relação ao resto do mundo: "Criamos muros à nossa volta". Antes da conversa, Bento XVI é direto e mostra-se contra o cardeal. Porém, há qualquer coisa nas suas palavras que o chama, cria-se uma amizade. Mais tarde, chega a admitir que sentiu Deus a falar-lhe através de Bergoglio. 

    Aliás, esse é o principal assunto do filme: a fé/ligação a Deus e a capacidade de o ouvir. É algo que os dois discutem várias vezes. E acho extremamente pertinente falar já que, muitas vezes, este detalhe importante é ignorado. No meio de todas as regras, exceções, rituais e julgamentos, esquece-se da verdadeira origem da religião. Na minha modesta opinião, não é preciso seguir a Bíblia à risca para continuar a acreditar em Deus. A fé é inexplicável, porém avassaladora. E deve ser algo acima de uma mera lista de pecados. 
  


    

    Todos pecamos. Na verdade, a própria história do filme serve para humanizar os Papas. Para além das conversas entre ambos, vamos também descobrindo mais acerca de Bergoglio e da razão pela qual sente que deve sair da ribalta, nunca querendo sequer ser Papa (nem põe essa hipótese na mesa). Apesar do meu carinho especial, confesso que desconhecia totalmente a sua história. É de admirar a forma como a fé fez com que abdicasse do amor da sua vida. Foi o chamamento de Deus que o relembrou do porquê de querer seguir a via eclesiástica. Aprendemos sobre o seu passado condicionado à política ditatorial, o próprio considera que, na situação, a sua ação foi pecadora. É o sentimento de culpa que o faz querer melhorar e, mais tarde, é nomeado bispo, seguido de cardeal, pela sua atenção e olhar sobre o mundo. 

    O Papa Bento XVI conta ao novo amigo a sua vontade de renunciar e confessa-lhe os seus pecados. Lamenta não ter vivido melhor a vida na sua juventude, o que o desligou dos problemas mundiais, nunca tendo lidado com as coisas em primeira mão. E pede especial perdão pela forma como agiu perante os casos de pedofilia. É uma cena silenciosa, mas a reação do cardeal e todo o ambiente indicam que, apesar de saber o que se passava, deixou que acontecesse sem repercussões (apenas com transferências para outros locais) e que se repetisse. Tudo para não criar escândalo. 

    Jorge Bergoglio mostra, claramente, o seu choque e insiste que, por isso mesmo, terá de permanecer como Papa até morrer; para corrigir os seus erros. Tal como Jesus não desceu da cruz, parafraseando. Desde cedo, percebemos que é um homem muito diferente do seu antecessor, ou de qualquer outro padre, ou bispo, ou Papa. Contudo, acho que é quase impossível não sentirmos algum tipo de empatia por ambos através do filme. 





    Os dois atores, Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, fazem um trabalho excelente de encarar as duas figuras. Por vezes, parecem exatamente os verdadeiros. Também tem um carácter muito cómico, não só do humor carismático do argentino (em contraste com a personalidade austera do alemão), mas também de imensas cenas que nos deixam a pensar: será que aconteceu mesmo? Não sei, provavelmente não, mas são tão hilariantes que quero pensar que sim. Seja quando o cardeal tenta ensinar o Papa a dançar o tango ou a maravilhosa cena em que Bergoglio está a assobiar a música "Dancing Queen", dos ABBA, enquanto lava as mãos ao lado de Ratzinger na casa-de-banho - absolutamente de génio (e uma ótima forma de desenvolver as personagens para nos ajudar a perceber melhor as pessoas reais).

    Até o jogo de filmagens (mais das cenas de diálogo entre eles) tem o seu lado humorístico, que quase faz lembrar a série de comédia "The Office". É uma técnica que faz parecer como se fosse filmado em modo reality show. Creio que também possa ter sido usado para não deixar a audiência esquecer-se que se trata de pessoas e situações reais. 

    É uma produção muito comovente que todos deveriam ver, independentemente da fé ou da falta dela. Sendo a religião católica uma das maiores do mundo, é importante que pensemos na influência que tem na vida das pessoas, positiva e negativa. Não podemos deixar de falar de certos acontecimentos só porque somos crentes e não queremos que se fale mal da religião; contudo, também não podemos ignorar completamente o impacto que os ideais religiosos de fraternidade, união, entre-ajuda, compaixão, entre outros, que servem para ensinar humanidade às pessoas, têm sobre elas. É preciso, como nos mostra o filme, continuar a comunicar, a debater e a dialogar sobre a evolução e o futuro da religião. E, sobretudo, como deve visar fazer cada vez melhor, para o bem dos seus fiéis. 



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